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SOBRE A RESSIGNIFICAÇÃO DE RELAÇÕES

E PRÁTICAS SOCIAIS

O conceito de inovação social é abordado pelas mais diferentes disciplinas como administração, sociologia, economia, entre outras. Para a construção de nosso entendimento sobre o conceito de inovação social, buscamos embasamentos teóricos que estivessem relacionados não somente à nossa área de interesse, o design, como também ao tema da sustentabilidade. Como resultado de nossa investigação bibliográfica e documental, deparamo-nos com dois projetos de pesquisa internacionais. De cada um deles retiramos insumos para elaborarmos uma interpretação própria do conceito.

O primeiro projeto de pesquisa estudado foi o projeto Emerging User Demands for Sustainable Solutions (EMUDE), realizado entre 2004 e 2006, em oito países europeus. Sua origem está diretamente relacionada a discussões sobre desenvolvimento sustentável conduzidas pela ONU. Um dos encontros para debater o tema foi a Conferência Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável em 2002 (também chamada de Rio+10), em Johannesburg, na África do Sul. Dentre os conteúdos apresentados, destacaram-se as soluções inventadas por pessoas e comunidades para padrões mais sustentáveis de produção e consumo e modos inovadores de vida adaptados a culturas e necessidades locais. (MARRAS, 2008).

 

Em função desse fato e para aprofundar os estudos sobre os casos discutidos, foi então criado o projeto de pesquisa EMUDE, desenvolvido por um consórcio formado por universidades e institutos de pesquisa em design e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). O projeto foi financiado pela Comissão Europeia e seu objetivo principal era

[...] to explore the potential of social innovation as a driver for technological and production innovation, in view of sustainability.To this end it seeks to shed more light on cases where individuals and communities use existing resources in an original way to bring about system innovation. It then pinpoints the demand for products, services and solutions that such cases and communities express, and drafts lines that could lead to improved efficiency, accessibility and diffusion. (EMUDE, 2007, p. 4).

A pesquisa foi coordenada pelo Departamento de Industrial Design, delle Arti, della Comunicazione e della Moda (INDACO) da Politécnica de Milão, na Itália, e contou com Manzini como coordenador científico. Os estudos foram realizados com base em uma abordagem de design estratégico, para que fosse possível identificar os casos promissores de inovação social e as comunidades que os produzem. Depois do mapeamento, foram propostas estratégias orientadas pelo design para reforçá-las e apoiá-las para que atingissem a maturidade necessária sem perder suas qualidades e seus valores originais. (EMUDE, 2006). O projeto EMUDE reconheceu a importância da auto-organização de cidadãos para resolver suas demandas de um modo inovador, e destacou a importância de um trabalho em rede para que a inovação social se desenvolva e seja disseminada. (CIPOLLA, 2017).

No primeiro livro como fruto da pesquisa, Creative communities: people inventing sustainable ways of livings, editado por Meroni (2007), são apresentadas soluções para desafios diários colocadas em prática por pessoas que utilizam seus conhecimentos e competências para reconfigurar, de modo criativo, seus recursos disponíveis. As denominadas comunidades criativas (MERONI, 2007), que poderiam ser também interpretadas como as ilhas mencionadas no capítulo anterior, podem ser identificadas nos mais diferentes contextos socioeconômicos e possuem algumas características em comum. São formadas por pessoas corajosas, motivadas e empreendedoras, que ressignificam seus problemas do dia-a-dia, transformando-os em oportunidades de mudar suas vidas e, consequentemente (mesmo que em alguns casos inconscientemente), de mudar também a sociedade. (MERONI, 2007). As soluções desenvolvidas por essas comunidades criativas são então entendidas como radical innovations of local systems (MANZINI, 2007, p. 14), ou seja, em um determinado contexto introduzem novos modos de fazer as coisas, assim como novos significados para práticas e relações sociais.

A dimensão criativa da inovação social é apresentada no livro através de exemplos de soluções relacionadas à moradia, alimentação, deslocamento, trabalho, aprendizagem e socialização, como a Findhorn Ecovillage - ecovila sustentável na Escócia; o Biomercatino - pequeno mercado orgânico na Itália; o Bicycle Flea Market - mercado para conserto e revenda de bicicletas na Finlândia; e o Ayrshire Local Exchange Trading System (LETS) - sistema de trocas locais no Reino Unido. (MERONI, 2007). Essas soluções demonstram o que Manzini (2008) e Meroni (2007) chamam de criatividade difusa, aquela colocada em prática coletivamente por pessoas que não têm um conhecimento especializado em disciplinas criativas. É a criatividade que todos podem e devem desenvolver para que seja possível lidar com contextos turbulentos e imprevisíveis. (EMUDE, 2006).

No segundo livro, como resultado da pesquisa, intitulado Collaborative Services: social innovation and design for sustainability, Jégou e Manzini (2008) destacam os processos colaborativos desenvolvidos por empreendimentos que emergem a partir das comunidades criativas e os reflexos desses processos no tecido social.

Esses empreendimentos, criadores de inovação social, são formatos mais maduros das comunidades criativas que oferecem serviços e produtos em que os papéis dos produtores e consumidores se misturam, e que também apresentam novas concepções de bem-estar e de desenvolvimento local. (JÉGOU; MANZINI, 2008). Chamados então de empreendimentos sociais difusos, eles são

[...] groups of people who, in their everyday lives, organise themselves to obtain the results they are directly interested in; the expression “producing specific results and social quality” refers to the process whereby, through actively seeking to resolve their problems, the activities of these groups of people have the side effect of reinforcing the social fabric and improving environmental quality. In short they produce sociality. (JÉGOU; MANZINI, 2008, p. 32).

Esse tipo de empreendimento difere do que comumente se conhece por empreendimento social, pois no caso dos empreendimentos sociais difusos, a elaboração e coordenação das atividades são realizadas colaborativamente entre os diversos participantes. São contrários a diversos empreendimentos sociais que são administrados por uma única pessoa, o empreendedor social. (ASHOKA, [2016?]; MANZINI, 2015).

Devido aos processos colaborativos que ocorrem nos empreendimentos sociais difusos, Jégou e Manzini (2008) referem-se às maneiras de organização desses empreendimentos como organizações colaborativas que, por sua vez, fornecem serviços e produtos baseados nas relações interpessoais e no compartilhamento de valores comuns. (JÉGOU, MANZINI, 2008; MERONI, 2007). Enquanto Meroni (2007) aponta para o prazer de se estar e fazer junto e de exercer assim a reciprocidade, Jégou e Manzini (2008) ressaltam a importância da confiança entre os participantes que, segundo os autores, é uma pré-condição para a existência desse tipo de organização.

 

A concepção de inovação social apresentada na pesquisa EMUDE baseia-se, portanto, em quem a produz e nos processos que acontecem entre as pessoas envolvidas, mais do que na descrição do que seja inovação social. Em resumo, a pesquisa nos fornece uma visão de inovação social como um processo de aprendizado voltado à resolução de problemas e/ou ao aproveitamento de oportunidades. Esse processo é então desenvolvido colaborativamente por grupos de pessoas que utilizam seus recursos disponíveis de forma criativa que, por produzirem novos significados através de suas ações, provocam descontinuidades na lógica dominante.

O segundo projeto de pesquisa no qual nos baseamos é o projeto Transformative Social Innovation Theory (TRANSIT), realizado entre os anos de 2014 e 2017, por um consórcio de doze parceiros da Europa e da América Latina. O projeto foi coordenado pelo DRIFT, instituto de pesquisa holandês sobre transições para sociedades mais justas, sustentáveis e resilientes, sediado na Erasmus University, em Roterdã, na Holanda. Se na pesquisa EMUDE as bases para o projeto de pesquisa foram estudos de caso pontuais realizados por pequenos grupos de pessoas, na pesquisa TRANSIT as bases foram as ações de vinte redes translocais de inovação social (ver Quadro). Essas redes atuam localmente mas fomentam conexões entre diferentes iniciativas a nível internacional.

Quadro - Redes Pesquisadas pelo Projeto TRANSIT

Fonte: Elaborado pela autora, com base em TRANSIT, [2017?].

Vale destacar que entre as redes pesquisadas está a DESIS Network que surgiu a partir de três atividades internacionais: do projeto EMUDE; do projeto Creative Communities for Sustainable Lifestyles com foco no Brasil, Índia e China; e da conferência Changing the Change realizada em 2008, em Torino, na Itália. (DESIS, [2017a?]). A principal ideia impulsionadora para a criação da rede foi a de que a inovação social poderia ser um importante direcionador para modos de vida mais sustentáveis e que as escolas de design poderiam ser parceiras no suporte a esse processo. (DESIS, [2017a?]). A partir de 2009, a DESIS Network espalhou-se através de laboratórios em escolas de design, sendo um deles o SeedingLab, laboratório sediado na Unisinos e do qual fazemos parte.

O objetivo do projeto TRANSIT foi então construir, a partir dos estudos de caso e de outras teorias como as teorias da transição, do movimento social e institucional, uma teoria de inovação social transformadora com foco em

 

[...] understanding and explaining the ways in which social innovation interacts with processes of systemic or transformative change, as many urgent societal challenges are understood as requiring fundamental and systemic transformations. (HAXELTINE et al., 2016, p. 2).

A pesquisa também apresentou como propósito entender como os atores são empoderados, ou mesmo desempoderados, nos e pelos processos de inovação social, para que sintam-se capazes (ou não) de criar estratégias de transformação.

Para os pesquisadores do projeto TRANSIT, a inovação social transformadora é um processo interativo e co-evolutivo que não apenas desafia, mas também tem o potencial de alterar ou substituir instituições existentes ou dominantes no contexto local. Entende-se por instituições as lógicas e modos dominantes, sejam eles quais forem. Este processo diz respeito ao exercício de novas relações sociais que são, ao mesmo tempo, produto e produtoras de novas maneiras de fazer, de organizar, de conceituar e de saber. (AVELINO et al., 2017; HAXELTINE et al., 2016). A figura a seguir representa a interligação entre essas esferas da inovação social.

Fonte: Avelino (2017, p. 3).

Os novos modos de fazer referem-se às maneiras de concretizar as ideias através de práticas e tecnologias. Podemos citar o uso de impressoras 3D e de softwares e hardwares livres, como fazem os fab labs e living labs. Ou as tecnologias sociais empregadas em ecovilas e iniciativas de economia solidária. As novas formas organizacionais e de governança são aquelas relacionadas a processos de organização e gestão como podemos ver nas iniciativas de orçamento participativo e nas cooperativas. As novas maneiras de conceituar tratam de novas visões e percepções que nos levam a imaginar outras possibilidades de vida. A pesquisa TRANSIT traz a noção de narrativas (ou contra-narrativas) de mudança, ou seja, um conjunto de ideias, conceitos, metáforas, discursos ou histórias sobre mudança e inovação. (AVELINO et al., 2017). E por fim, novos modos de saber e de aprender nos permitem trocar conhecimentos e habilidades, diferentemente da forma como vem sendo feito.

Uma iniciativa de inovação social não precisa necessariamente abranger essas quatro dimensões, podendo destacar-se em apenas uma ou duas delas. Além disso, os pesquisadores salientam que a inovação social não é necessariamente sobre criar algo novo, mas é também sobre a redescoberta ou o despertar de algo antigo reconfigurado para novos contextos.

Partindo então dos dois projetos de pesquisa explicitados, construímos nosso entendimento do conceito de inovação social. Um primeiro aspecto relevante é a sua dimensão criativa, ou seja, quando falamos em inovação social estamos inerentemente falando também de processos criativos. Como apontado pela pesquisa EMUDE (2007), a inovação social surge a partir de processos criativos praticados por grupos de pessoas engajadas em um objetivo. A criatividade na inovação social manifesta-se nas novas configurações e significados dados para produtos, serviços, sistemas, metodologias e conceitos.

Além da relação entre criatividade e inovação social trazida pela pesquisa EMUDE (2007), um segundo aspecto é apresentado: a inovação social é também um processo colaborativo. A partir da observação das organizações colaborativas e de suas práticas, depreendemos que a inovação social está intrinsecamente relacionada a processos voltados à colaboração, processos esses que acontecem entre os produtores dos casos de inovação social, entre os produtores e consumidores ou usuários, e entre esses e outros atores que com eles interagem.

 

A inovação social que particularmente nos interessa é a que necessita de uma rede de atores interconectados para acontecer, para que assim consiga de fato promover uma mudança social, cultural, ambiental e econômica. Vimos que a colaboração entre os atores se dá a partir da criação de vínculos, do comprometimento e da confiança mútua.

 

Entretanto, observamos que a definição de inovação social advinda da pesquisa EMUDE ainda se concentrava na sua dimensão instrumental. Apesar de a pesquisa demonstrar que a inovação social promove novos significados e reconfigurações para práticas e relações sociais, o foco está na resolução de problemas especialmente através de empreendimentos. Como podemos ver na conceituação encontrada no segundo livro da pesquisa, Collaborative Services: "The term social innovation refers to changes in the way individuals or communities act to solve a problem or to generate new opportunities". (JÉGOU; MANZINI, 2008, p. 29).

 

Sendo assim, buscamos em outro estudo aportes que pudessem nos fornecer diferentes aspectos da inovação social que não estivessem associados diretamente à resolução de problemas, mas sim à produção de novos sentidos para relações sociais. A pesquisa TRANSIT então nos proporcionou uma perspectiva direcionada às relações sociais que, por sua vez, produzem e são produzidas por novas formas de fazer, saber, organizar e conceituar. (AVELINO et al., 2017).

Para fins da presente pesquisa, compreendemos então a inovação social não somente como a resolução de problemas sociais, de uma maneira diferente da que vinha sendo feita. Mas, também, como a reconfiguração e ressignificação de relações e práticas sociais realizadas por indivíduos e organizações que contribuem para uma mudança em direção ao desenvolvimento sustentável da sociedade. Diferentemente dos pesquisadores do projeto TRANSIT que argumentam que nem o objetivo nem o resultado deveriam ser incluídos na definição de inovação social (HAXELTINE et al., 2016), nós apontamos para um propósito específico. É rumo a um mundo mais sustentável e de maior cuidado mútuo que intencionamos ir, ou seja, rumo ao novo continente de civilização sustentável. (MANZINI, 2017a, p. 16). No próximo capítulo trataremos sobre essa questão.

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