UMA VISÃO DE MUNDO SUSTENTÁVEL
Neste momento, é necessário esclarecermos qual é então a nossa visão de mundo sustentável que pode ser promovida por inovações sociais, e quais foram os passos que demos para a formulação dessa visão. A origem da pesquisa EMUDE, relacionada às discussões promovidas pela ONU a respeito de desenvolvimento sustentável, nos provocou a investigar o tema a partir deste órgão internacional. Inicialmente, voltamos nossa atenção às concepções apresentadas através dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
Em 2015, representantes de 193 Estados-membros da ONU e o público em geral elencaram dezessete objetivos para serem alcançados até 2030 que abrangem o desenvolvimento social, econômico e ambiental do planeta. Entre eles estão: acabar com a fome e a pobreza; promover oportunidades de aprendizagem; assegurar padrões de produção e consumo sustentáveis; alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas; fomentar a inovação; e promover sociedades pacíficas e inclusivas. (NAÇÕES UNIDAS, 2015).

Fonte: Nações Unidas.
Cada objetivo possui metas específicas e indicadores para que seja possível mensurar os avanços. O ODS de número 11, por exemplo, refere-se a transformar, até 2030, cidades e assentamentos humanos em lugares mais inclusivos, seguros, sustentáveis e resilientes. As metas do ODS 11 englobam a garantia de acesso de todos à habitação adequada, aos serviços básicos, a sistemas de transporte e a espaços públicos, assim como o aumento da urbanização inclusiva e sustentável e a capacidade de planejamento e de gestão participativa. (NAÇÕES UNIDAS, 2015).
Em função de um interesse pessoal de pesquisa quanto aos processos urbanos, nos aprofundamos no ODS 11. Foi, então, que nos deparamos com a World Urban Campaign (WUC), coordenada pelo Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-HABITAT). A WUC tem como finalidade colocar na pauta das políticas de desenvolvimento a Nova Agenda Urbana (NAU). A agenda consiste em um plano de ação de urbanização em apoio à Agenda 2030 sobre desenvolvimento sustentável, em especial o suporte ao ODS 11. O plano é uma diretriz tanto para a ONU-HABITAT, quanto para seus parceiros no governo, em outros órgãos da ONU, na sociedade civil, no setor privado e na comunidade acadêmica e científica. (UN-HABITAT, 2016b). Outro de seu propósito é "[...] to raise awareness about positive urban change in order to achieve green, productive, safe, healthy, inclusive, and well planned cities". (WUC, [2017?]).
A WUC fomenta ao redor do mundo os Urban Thinkers Campus, encontros para pensadores urbanos que gerou em 2016 o manifesto The City We Need 2.0. (UN-HABITAT, 2016a). Esse documento apresenta uma nova perspectiva urbana para o século 21 e foi elaborado a partir de contribuições de mais de 7.800 mulheres e homens de 124 países e 2.137 organizações, representando 14 diferentes grupos constituídos.
O documento aponta para a necessidade de uma abordagem sistêmica no planejamento e no desenvolvimento de ferramentas que permita aos tomadores de decisão e aos cidadãos uma melhor compreensão das complexas conexões sociais, econômicas e políticas inerentes aos sistemas urbanos. (UN-HABITAT, 2016a). De acordo com o que é colocado no manifesto, a abordagem sistêmica também é capaz de contribuir para que os objetivos econômicos de curto prazo sejam superados por políticas e estratégias de longo prazo, cujos focos são abundância compartilhada, melhoria da saúde, da segurança e do bem-estar de todos os habitantes das cidades. Além disso, o manifesto evidencia a importância de mudança do paradigma de produção centralizada para modelos participativos e colaborativos sustentáveis, incentivando a coprodução entre fornecedores e usuários, a economia verde e a economia circular. (UN-HABITAT, 2016a).
Os princípios que apontam para uma outra visão de vida urbana elencados no documento The City We Need 2.0 nos dizem que a cidade de que precisamos é socialmente inclusiva e envolvente; não é cara, é acessível e equitativa; é economicamente vibrante e inclusiva; é administrada coletivamente e governada democraticamente; promove o desenvolvimento territorial coeso; é regenerativa e resiliente; tem identidades compartilhadas e sentido de lugar; é bem planejada, caminhável e amigável ao trânsito; é segura, saudável e promove bem-estar e; aprende e inova. (UN-HABITAT, 2016a).

Apesar de o documento tratar de princípios generalizados, entendemos que estes estão em sintonia com princípios locais e adequam-se a realidades distintas. Essa percepção foi legitimada durante nossa participação no Urban Thinkers Campus Porto Alegre, realizado nos dias 10, 11 e 12 de novembro de 2017. O tema do evento eram as zonas de inovação sustentável como impulsionadoras da NAU, dos ODS e do Acordo do Clima de Paris, através do empoderamento cidadão, do engajamento empreendedor e da colaboração estratégica. Durante as discussões no evento, ficou clara a aderência dos princípios do manifesto à realidade de uma cidade como Porto Alegre.
Embora os documentos e relatórios da ONU nos forneçam ideias válidas para a construção de nossa visão de mundo sustentável, verificamos que havia um maior enfoque no desenvolvimento econômico como principal vetor para resolução de problemas sociais e ambientais. Isso se verifica em trechos como o seguinte
Os esforços de desenvolvimento das Nações Unidas têm influenciado profundamente a vida e o bem-estar de milhões de pessoas em todo o mundo. Orientando estes esforços está a convicção de que a paz internacional e a segurança duradouras só são possíveis se o desenvolvimento econômico e o bem-estar social das pessoas em todos os lugares forem garantidos. (NAÇÕES UNIDAS, [2017?]).
Em muitos contextos, a busca desenfreada por desenvolvimento econômico é antes a causa desses problemas do que a solução, e isso ocorre por ainda estar fortemente fundamentado em uma lógica capitalista. (VIZEU, MENEGHETTI, SEIFERT, 2012). Com isso, não queremos dizer que a dimensão econômica da sustentabilidade não seja importante, mas acreditamos que ela não se sobrepõe às outras.
Nossa crítica encontrou eco na análise de Boff (2015), que argumenta que os próprios conceitos de desenvolvimento econômico e sustentabilidade são contraditórios. Segundo ele, enquanto o primeiro se apresenta como linear e excludente, visando o crescimento material, o segundo é circular e inclusivo, pois se baseia na cooperação, co-evolução e interdependência de todos os seres. Boff (2015) salienta que, se a viabilidade do desenvolvimento seguir sendo medida pelo aumento do Produto Interno Bruto (PIB), pela acumulação de bens e serviços, pelo aumento de renda, entre outros indicadores elaborados por governos e empresas, não é possível que haja de fato justiça social. Isso porque a realidade nos mostra que quem tem dinheiro e posses, seguirá com cada vez mais dinheiro e posses, em detrimento da população mais pobre – ou seja: a desigualdade aumentará. O autor ainda afirma que, se continuarmos com os mesmos padrões e a mesma forma de produção e consumo, levando à exaustão os recursos naturais não renováveis e impedindo a autorregeneração do planeta, é impossível que tenhamos processos ambientalmente corretos. (BOFF, 2015).
Na busca por uma referência que trouxesse uma percepção complementar à da ONU acerca do desenvolvimento sustentável e que levasse em conta os pontos levantados por Boff (2015), encontramos as contribuições da permacultura. A permacultura é um conceito criado por dois ecologistas, Bill Mollison e David Holmgren, nos anos 70. Significa uma visão de cultura permanente e sustentável embasada no pensamento sistêmico e em princípios éticos e de design que norteiam sua implementação. (HOLMGREN, 2013). Esses princípios éticos e de design orientam as mudanças necessárias em diversos campos, através de um percurso que inicia no nível pessoal e local, e que se dirige ao nível coletivo e global.

Fonte: Ética... (2008).
Os princípios éticos foram elaborados "[...] a partir da pesquisa em ética de comunidades, conforme adotada por grupos cooperativos e religiosos antigos". (HOLMGREN, 2013, p. 51). Assim como a partir do conhecimento de culturas tribais indígenas que existiram em equilíbrio dinâmico com seus ambientes por milhares de anos. Os princípios éticos remetem ao cuidado com a Terra, ou seja, com os solos, as florestas, a água e todas as formas de vida. Dizem-nos que precisamos estabelecer limites ao consumo e à reprodução desenfreada e, ao mesmo tempo, que precisamos redistribuir e compartilhar os excedentes tanto materiais quanto imateriais (partilha justa). Os princípios abordam também a importância do cuidado consigo mesmo e com as pessoas com as quais nos relacionamos.
Os princípios de design da permacultura (representados em sentido horário na Figura 6) baseiam-se também em disciplinas como a biologia, geografia, ecologia e, principalmente, no pensamento sistêmico. São princípios que orientam a implementação da permacultura: observe e interaja; capte e armazene energia; obtenha um rendimento; pratique a autorregulação e aceite feedback; use e valorize os serviços e recursos renováveis; evite desperdícios; projete dos padrões aos detalhes; integre ao invés de segregar; use soluções pequenas e lentas; use e valorize a diversidade; use as bordas e valorize os elementos marginais e; use e responda à mudança com criatividade. (HOLMGREN, 2013).
Como mencionado anteriormente, os princípios éticos e de design orientam as mudanças necessárias em diversos campos que estão representados na Flor da Permacultura. Na área periférica estão alguns exemplos de iniciativas que já foram colocadas em prática e que utilizam a permacultura como direcionadora.

Fonte: Holmgren (2013, p.34).
A permacultura vai além do conceito de sustentabilidade atrelado exclusivamente aos aspectos social, econômico e ambiental, e abarca inclusive a dimensão pessoal e subjetiva. É uma visão que se aproxima do que Guattari (2012) chama de ecosofia, uma articulação ético-política e estética do meio ambiente, das relações sociais e da subjetividade humana. Uma articulação que engloba
Novas práticas sociais, novas práticas estéticas, novas práticas de si na relação com o outro, com o estrangeiro, com o estranho: todo um programa que parecerá distante das urgências do momento! E, no entanto, é exatamente na articulação: da subjetividade em estado nascente, do socius em estado mutante, do meio ambiente no ponto em que pode ser reinventado, que estará em jogo a saída das crises maiores de nossa época. (GUATTARI, 2012, p. 55).
A ecologia mental torna-se um eixo relevante na situação em que vivenciamos hoje pois implica no fortalecimento da autonomia pessoal. Implica, consequentemente, no afastamento de uma atitude passiva perante a vida que, se permanecer assim, acabará por aumentar as crises de nossa época e os perigos " [...] do racismo, do fanatismo religioso, dos cismas nacionalitários caindo em fechamentos reacionários, os da exploração do trabalho das crianças, da opressão das mulheres..." (GUATTARI, 2012, p. 17), que já têm mostrado suas caras.
Em resumo, partindo dos relatórios da ONU (NAÇÕES UNIDAS, 2015; UN-HABITAT, 2016a), das críticas e referências complementares (BOFF, 2015; GUATTARI, 2012; HOLMGREN, 2013), pudemos construir nossa visão de como seria o continente de civilização sustentável do qual nos fala Manzini (2017a). É uma perspectiva de mundo inclusivo, em que há igualdade de gênero, possibilidade de participação democrática nos processos decisórios e em que todas e todos se sintam pertencentes ao lugar em que habitam. Um mundo em que as trocas econômicas são justas e transparentes, amparadas na medida do possível pela tecnologia; em que o desenvolvimento não é medido apenas por indicadores financeiros; em que o trabalho e a moradia dignos sejam a realidade para todas e todos; em que o cuidado mútuo, entre as pessoas e entre elas, o meio ambiente e a comunidade de vida – "flora, fauna e outros organismos vivos" (BOFF, 2015, p. 45) – seja prioridade, assim como o cuidado consigo mesmo, para que seja possível manter-se física e emocionalmente saudável. Um mundo no qual a diversidade cultural, as artes e a filosofia sejam devidamente valorizadas e fomentadas e que a aprendizagem seja incentivada para tornar possível a capacidade crítica, de regeneração e de autonomia.
O que pudemos perceber no nosso estudo é que existem inúmeros grupos de pessoas, ou, para usarmos a metáfora de Manzini (2017a), de ilhas que já estão atuando em direção a esse mundo retratado acima. É sobre esse tema que trataremos na próxima seção.