OCUPAÇÕES
URBANAS
As ocupações urbanas são constituídas de famílias em situação de vulnerabilidade que se organizam para dar função social a imóveis públicos ou privados abandonados ocupando-os. São movimentos de resistência que lutam não apenas pelo direito à moradia digna, mas pelo amplo direito à cidade. (LEFEBVRE, 2011). As ocupações urbanas são, portanto, grupos de pessoas que lutam por justiça, igualdade e por uma cidade inclusiva. Resistem à transformação dos cidadãos em meros consumidores e da moradia em mercadoria, reivindicando seu papel de agente ativo nas dinâmicas de construção da cidade.
Em Porto Alegre, no começo do século 20, iniciou-se um processo de assepsia da cidade que acabou por expulsar do centro para a periferia os moradores de becos, cortiços e casebres. Na figura abaixo é possível ver as remoções na cidade entre 1961 e 2015.

Fonte: Sanches e Soares (2017, p. 7).
Cidadãos que moravam na região central onde também era seu ambiente de trabalho e onde estavam equipamentos fundamentais como hospitais e escolas se viram forçados a mudar para regiões afastadas da cidade. Isso acarretou não somente em horas a mais de deslocamento, mas principalmente em uma perda da identidade de comunidade que antes possuíam. Devido também à falta de políticas habitacionais adequadas, as famílias em situação de vulnerabilidade social e econômica encontraram-se sem uma moradia digna, um direito garantido pela Constituição Federal. Para os pesquisadores Sanches e Soares (2017, p. 4) as ocupações
[...] demonstram o poder de organização da sociedade civil em garantir direitos e ainda, mostram que diversos saberes podem contribuir para a formação de metrópoles mais igualitárias. Em cidades marcadas pela injustiça social, pelo abandono de patrimônios públicos e culturais, estas experiências se colocam como sopros de um possível regresso a objetivos que já foram pauta para todos que trabalham com Geografia Urbana como o exercício da cidadania e a busca pela democracia participativa real.
Em uma notícia veiculada em julho de 2017 há a informação, fornecida pelo então presidente da Comissão de Saúde e Meio Ambiente da Câmara Municipal de Porto Alegre, de que existem "[...] 500 ocupações urbanas em áreas públicas e privadas. Mais de 300 mil pessoas vivem nesses locais, pouco mais de 20% do total da população". (COMISSÕES..., 2017). E, mesmo com programas habitacionais como o Minha Casa Minha Vida, o número de pessoas sem moradia adequada segue alarmante.
As ocupações urbanas de interesse para este estudo são especificamente as ocupações de casas ou prédios localizados em bairros centrais de Porto Alegre e que também desenvolvem atividades socioculturais para a comunidade: Assentamento 20 de Novembro, Assentamento Utopia e Luta, Kuna Libertária, Ocupação Lanceiros Negros, Ocupação Mulheres Mirabal, Ocupação Pandorga, Ocupação Saraí e Violeta Casa de Cultura Popular.

Dentre as ocupações mapeadas, apesar de todas terem espaços de moradia fixa ou temporária, há algumas distinções. A Kuna Libertária, Pandorga e Violeta - Casa de Cultura Popular são iniciativas chamadas de "ocupas culturais". São formadas por artistas, estudantes e educadores que, além de buscarem um local de moradia, também procuravam por um espaço para a realização de atividades socioculturais para a população. Nelas é comum o alojamento de artistas de rua ou artistas itinerantes que vêm de outras cidades do Brasil ou ainda de outros países.
Em relação às atividades socioculturais desenvolvidas, há a exibição de filmes e documentários com posterior roda de conversa sobre os temas abordados. Os debates sobre assuntos como reforma urbana, feminismo, movimento negro, luta e resistência acontecem com frequência. São realizadas inúmeras aulas e oficinas gratuitas sobre música (percussão, bateria, violão), fanzine, artes visuais, clown e teatro. E também aulas semanais voltadas a atividades físicas como capoeira, yoga, dança e circo.
As diversas linguagens artísticas abordadas nas atividades são apresentadas ao público em saraus, e bibliotecas ficam à disposição daqueles interessados em pegar livros emprestados. As ocupações costumam realizar feiras e bazares em que suas produções e de parceiros são expostas e comercializadas. Cabe ressaltar que todas essas atividades são também realizadas nas ocupações de outros perfis, entretanto, nas "ocupas culturais" acontecem com mais frequência. As atividades estão listadas nesta página.
Destacamos a atuação da Ocupação Pandorga que desde 2015 vem desenvolvendo atividades com foco na comunidade Cabo Rocha. A Pandorga ocupou um imóvel pertencente à Coordenação de Transportes Administrativos (CTA) e cedida à Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC). Por seis anos o imóvel ficou abandonado e sem uso. (FOGLIATTO, 2015). Atualmente, a Pandorga realiza oficina de conserto de bicicletas, aulas de yoga e capoeira, oficina de percussão e de circo. Aos sábados, às 16h, acontece a Pandorga Brincante em que as crianças são convidadas a brincar no espaço. Mutirões são ativados pelos participantes para reformas e novas construções, como a construção de um forno de barro para o espaço.
Os assentamentos 20 de Novembro e Utopia e Luta, e as ocupações Lanceiros Negros e Saraí são focadas predominantemente em moradia, mas também em geração de renda. As duas primeiras são chamadas de assentamento pois já têm a posse do imóvel. Estivemos no Assentamento 20 de Novembro e realizamos entrevista com Ezequiel Morais, ex-integrante da Ocupação Saraí e morador do assentamento. Morais é um dos integrantes do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) e membro ativo na luta pela reforma urbana.
Outros pontos de contato com o projeto do Assentamento 20 de Novembro foram as ocasiões nas quais participamos do segundo encontro do ciclo Design para Democracia promovido pelo SeedingLab, e do 7º Simpósio Identidade e Território e Imagem na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRGS. Nesses eventos a história e o projeto arquitetônico para o assentamento foram apresentados.
O Assentamento 20 de Novembro está desde 2013 em um imóvel que ficou abandonado por quase cinquenta anos (fotografia abaixo). Porém, a história do assentamento começou em 2006 em uma outra ocupação no Centro Histórico de Porto Alegre, onde hoje é a Ocupação Saraí. Os integrantes do assentamento fazem parte do MNLM. Após batalharem por anos, a escritura do imóvel passou a pertencer à Cooperativa 20 de Novembro em 2016, através do Programa Minha Casa Minha Vida Entidades. Atualmente, os moradores estão vivenciando um processo de arquitetura participativa com o escritório AH! Arquitetura Humana, residente da casa colaborativa Vila Flores. Com os arquitetos, realizam reuniões para que juntos definam suas necessidades e sonhos para o local. A intenção, além de criar 40 unidades habitacionais de um e dois dormitórios, é ter horta comunitária no terraço, pátio e centro cultural, cozinha coletiva, salas multiuso, salão de festas e de luta, ciranda, biblioteca e pracinha (figura abaixo).

Fotografia do Assentamento 20 de Novembro. Fonte: Registrada pela autora.

Fonte: Arquitetura Humana (2017).
O Assentamento 20 de Novembro é uma referência na luta pela moradia e tem servido de exemplo para outras ocupações em diferentes cidades do país. Entretanto, esse é um caso raro na história das ocupações. A Ocupação Saraí, de onde vieram diversos moradores do Assentamento 20 de Novembro, tem sua história marcada por reintegrações de posse e despejos.
Durante a Semana Acadêmica da Arquitetura e Urbanismo da UFRGS participamos de uma roda de conversa com moradores da Ocupação Saraí. Em uma visita pelo prédio pudemos conhecer a moradia de um deles. No encontro com os moradores ouvimos a história da ocupação e de como tem se dado sua relação com os vizinhos e órgãos públicos.


Fotografias da Ocupação Saraí. Fonte: Registrada pela autora.
Dentre as ocupações, há a Ocupação Mulheres Mirabal que atende mulheres e crianças em situação de vulnerabilidade, prestando um serviço de acolhimento. Estivemos na Mirabal na ocasião do despejo das famílias da Ocupação Lanceiros Negros. A Ocupação Mirabal acolheu algumas das famílias e estavam recebendo doações de alimentos, roupas e brinquedos para as crianças.
Existe um apoio mútuo entre as ocupações que não observamos entre os outros tipos de ecossistemas criativos. Na medida de suas possibilidades, os integrantes de uma determinada ocupação colaboram com informações, conhecimento e recursos materiais. Em função de os seus integrantes participarem de movimentos sociais organizados como o MNLM, o Movimento de Luta nos Bairros Vilas e Favelas (MLB), o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), a Confederação Nacional de Associações de Moradia (CONAM), entre outros, acabam por trocar experiências para que consigam seguir com suas atividades.
Uma das formas de colaboração nas ocupações e entre elas é a realização de mutirões para reformar os ambientes, quando os moradores e frequentadores juntam-se para fazer melhorias no local, buscando doações de material e mão-de-obra para transformarem os ambientes em espaços acolhedores de convívio. Exemplos são as hortas urbanas nas ocupações, algumas em estágios iniciais como a da Ocupação Pandorga, outras mais evoluídas como a horta hidropônica do Assentamento Utopia e Luta, que inclusive comercializa sua produção. Atividades voltadas à alimentação como almoços, venda de produtos e feiras acontecem com frequência e são fontes de renda para os integrantes das ocupações. Há projetos de venda de refeições prontas para o público externo.
Cada ocupação possui um formato organizacional distinto. Algumas estão formalizadas juridicamente, como o Assentamento 20 de Novembro e o Assentamento Utopia e Luta que são cooperativas. A gestão interna das ocupações baseia-se na autogestão e algumas identificam-se com propostas anarquistas, evitando todo o tipo de hierarquia.
As ocupações não estão livres de atos violentos como os empregados pela polícia na Lanceiros Negros e Pandorga no ano de 2017. Famílias foram retiradas da Ocupação Lanceiros Negros após a reintegração de posse do imóvel. (WEISSHEIMER, 2017a), enquanto que a Pandorga foi invadida por policiais em função da Operação Érebo que estava em busca de organizações identificadas como anarquistas. (WEISSHEIMER, 2017b).
O senso crítico das ocupações urbanas manifesta-se através de suas reivindicações por moradia digna e espaços com a devida função social nos centros urbanos. Não aceitam a situação de pessoas que não tenham uma habitação adequada ou que não tenham um local em que possam realizar atividades socioculturais para comunidades em situação de vulnerabilidade. A criatividade e o senso prático está em buscar diferentes soluções para um problema social urgente, que é o déficit habitacional e os espaços ociosos.
É justamente a capacidade de aproximação e união de diferentes pessoas para a luta por seus direitos enquanto cidadãos o que nos mostram as ocupações urbanas. Ao contrário dos outros tipos de ecossistemas criativos, as ocupações urbanas demonstram um maior engajamento político em questões que afetam a tantas pessoas, como o caso da moradia e da função social da propriedade. A inovação social gerada pelas ocupações urbanas talvez seja a mais impactante pois é capaz de provocar a criação de políticas públicas com efeitos significativos para a sociedade. O terceiro arquipélago (figura abaixo) é formado, então, pelas ocupações urbanas, demonstrando novos modos de ser e fazer que resistem à lógicas impostas pelo mercado.

Fonte: Elaborada da autora.
Além da questão da moradia, as ocupações tocam pontos como a geração de renda e o desenvolvimento de atividades culturais, que geram coesão, autonomia e empoderamento nos participantes. As fotografias a seguir mostram as paredes das ocupações como suporte para mensagens de resistência e luta.

Fotografia do Assentamento 20 de Novembro. Fonte: Registrada pela autora.

Fotografia da Ocupação Saraí. Fonte: Registrada pela autora.
Morar em uma ocupação urbana em certos casos não é uma questão de escolha, mas sim de necessidade. Excetuando-se pessoas que escolhem morar em ocupações culturais, por exemplo, quem vai para uma ocupação é porque não tem outra opção de local para morar. Durante a busca por iniciativas de inovação social em Porto Alegre, tomamos conhecimento de um formato de habitação que, ao contrário das ocupações urbanas, é constituído de integrantes que escolhem estar ali. São as moradias compartilhadas, como veremos a seguir.