INTRODUÇÃO
Afirmar que estamos em tempos de crise parece ser algo redundante. Se olharmos para trás na história, sempre estivemos em algum tipo de crise, seja política, social, ambiental ou econômica. Um mundo estável, sem nenhum tipo de conflito, parece nunca ter existido e talvez não venha a existir. No Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, crise é o "[...] momento em que se deve decidir se um assunto ou o seguimento de uma ação deve ser levado adiante, alterado ou interrompido; momento crítico ou decisivo". (CRISE, [2017?]). Na vida não estamos constantemente lidando com imprevistos, incertezas e decisões a serem tomadas a todo momento? Portanto, crises, ou melhor, momentos críticos, são algo que constantemente nos acompanham.
O cenário atual mostra-nos que estamos em mais um desses momentos decisivos. Fora algumas manifestações mais volumosas da sociedade civil nos últimos anos contra o aumento de preços do transporte público (as chamadas Jornadas de Junho de 2013), e contra o governo da presidenta Dilma Rousseff em 2015 e 2016, a maioria dos cidadãos segue seus dias passivamente acompanhando pela televisão os últimos fatos. As alterações nas legislações trabalhista e previdenciária, o ataque à livre expressão artística e o aumento da intolerância às diferenças são observados da poltrona da sala.
A questão que surge, portanto, é a de escolher para onde direcionar o olhar e o que fazer. Seguiremos passivos e amedrontados acompanhando o aumento da desigualdade econômica, da exclusão social e da degradação ambiental? Ou focaremos em alternativas para mudar esse panorama através de reflexões críticas e de práticas que nos levem para uma situação de mais inclusão, igualdade, justiça, respeito e cuidado mútuo? Considerando que há possibilidade e liberdade de escolha, alguns grupos de pessoas optam pelo segundo caminho e buscam diariamente fazer as coisas de um modo diferente do que vem sendo feito.
Cansadas ou indignadas de ver para onde estamos indo se deixarmos tudo como está, esses grupos colocam em prática visões que apontam para outros modos de convivência e de trabalho. São proativas e criativas, e usam suas habilidades e recursos para transformar suas próprias realidades. E é no contexto urbano onde elas atuam mais diretamente. A cidade torna-se o palco de suas experimentações, o local de seus projetos de vida. Ao concretizarem suas ideias, produzem uma outra cidade, onde seus valores, desejos e sonhos materializam-se.
Em Porto Alegre, temos acompanhado as movimentações de diversos desses grupos que, através de suas atividades internas e outras abertas ao público, têm apresentado propostas que fogem da lógica dominante. A cidade tem passado por momentos críticos como o aumento da insegurança, escassos apoios do poder público para a arte e a cultura, alto déficit habitacional e o fechamento de diversos empreendimentos comerciais. Enquanto isso, alguns grupos buscam nas suas ações do dia-a-dia outras saídas, outras maneiras de reverter esse cenário. Através de novas relações sociais, inovam ao concretizarem seus projetos.
Ao observamos esses grupos para entender de que forma seus projetos também trazem novas perspectivas para as três dimensões da sustentabilidade (econômica, social e ambiental), pudemos perceber que suas ações contribuem para o alcance dos dezessete Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) elencados pela Organização das Nações Unidas (ONU). Além de promoverem inovações sociais, são grupos que cooperam em diferentes escalas para a diminuição das desigualdades, para a produção e consumo sustentáveis, para o trabalho e moradia decentes para todos, entre outros objetivos. (NAÇÕES UNIDAS, 2015).
Pela perspectiva do Grupo de Pesquisa em Design Estratégico para Inovação Cultural e Social (GPDEICS), esses grupos de pessoas são interpretados como ecossistemas criativos. Ecossistemas constituídos de relações entre pessoas que desenvolvem processos criativos que, por sua vez, geram artefatos, sistemas ou mesmo processos com potencial de serem originais e inovadores. (FRANZATO et al., 2015).
Em função justamente desse potencial, acreditamos que a articulação entre diferentes ecossistemas criativos possa vir a provocar significativas transformações sociais e culturais rumo a uma cidade mais sustentável. Pequenas ações pela cidade são certamente importantes para a mudança de um cenário sombrio, entretanto, acreditamos que é a união, o encontro e o diálogo entre elas que pode vir a impulsionar uma mudança social que se faz urgente e necessária.
No âmbito do design, é especialmente o design estratégico que vem discutindo formas de contribuir com esses ecossistemas criativos e, com isso, colaborar com possíveis transformações culturais e sociais. Pelas suas habilidades em articular diferentes atores de uma rede, de provocar o diálogo entre eles e juntos desenvolverem processos criativos, o design estratégico tem se mostrado como uma abordagem capaz de estimular interações e relações. (FREIRE; DEL GAUDIO; FRANZATO, 2016).
Manzini (2015b, 2017a), pesquisador da Politécnica de Milão, nos apresenta uma metáfora inspiradora neste sentido. Segundo ele, esses grupos organizados e as inovações sociais que promovem podem ser vistos como ilhas de um continente submerso de modos de ser e de fazer mais sustentáveis. Cada grupo representaria então uma ilha de alternativas ao que existe hoje. Entretanto, o autor complementa que essas ilhas encontram-se envoltas por um mar agitado, com ondas de intolerância, retrocesso e censura que ameaçam cobri-las. A importância de fazer emergir esse continente submerso e conectar de alguma maneira as ilhas está na sua potencialidade transformadora da situação atual, na sua capacidade de ensejar mudanças em direção a um mundo não só mais sustentável, mas mais democrático, justo e inclusivo. Mas como adverte Manzini (2017a, p. 14, grifos do autor) não basta fazermos com que as ilhas emerjam e conectem-se, é
[...] necessário fazer com que sua existência contraste mais diretamente as catástrofes que estão chegando. Isso implica achar também outras, novas modalidades de ação. Especialmente, pelo que nos toca, é preciso descobrir (rapidamente!) como e quanto a cultura de design possa contribuir também nesse novo território problemático que está se delineando.
Sendo assim, esta pesquisa tem como objetivo geral explorar, pela perspectiva do design estratégico, a integração de diferentes ecossistemas criativos que geram inovação social e colaboram com o desenvolvimento sustentável. Isso para que, com essa articulação, fortaleçam-se e sejam capazes de se configurar como uma alternativa à lógica dominante dos modos de ser e fazer, em especial na cidade de Porto Alegre. Para alcançar tal objetivo geral, estabelecemos os seguintes objetivos específicos: a) investigar ecossistemas criativos em Porto Alegre que promovem inovações sociais; b) identificar ações e visões convergentes dos ecossistemas criativos investigados no que diz respeito à sustentabilidade e suas dimensões econômica, ambiental e social e; c) elaborar propostas a partir do design estratégico para inovação social e sustentabilidade para o fomento de relações entre tais ecossistemas criativos.
Os três capítulos subsequentes a este introdutório apresentam e discutem o design estratégico, a inovação social e o desenvolvimento sustentável. Foi realizada pesquisa bibliográfica e pesquisa documental acerca de tais temas, além de terem sido debatidos os pontos fundamentais para este estudo.
No capítulo 2, são apresentadas as noções que norteiam essa pesquisa quanto ao design estratégico para inovação social e sustentabilidade. Nosso foco está nos estudos de Manzini (2014, 2015b, 2016, 2017a, 2017b), por ser um dos principais nomes no design a concentrar seu trabalho nessas questões. Segundo o autor, o papel do design, além de identificar e apoiar processos e práticas de inovação social para a sustentabilidade, é igualmente o de alimentar o diálogo entre as pessoas envolvidas com propostas e visões e conectá-las para que se reforcem mutuamente, gerando assim possibilidades de mudanças. (MANZINI, 2017a).
Ainda no segundo capítulo, abordamos conceitos nos quais nos baseamos para atingir o terceiro objetivo específico. Um deles é a coalizão de design que, de acordo com Manzini (2017a, p. 64), é a articulação coordenada de ações realizadas por designers e não designers "que compartilham uma visão sobre o que fazer e como e decidem fazê-lo em conjunto". Conforme o autor, é uma articulação desenvolvida especificamente a partir da abordagem do design estratégico. Vem de Manzini (2017a) também a percepção do importante papel do design em alimentar diálogos para impulsionar processos de aprendizagem e de transformação. Outro conceito é o de encontros colaborativos. Tais encontros são momentos de envolvimento ativo e colaborativo, também baseados na intensidade relacional e na intensidade dos vínculos sociais. Acreditamos que a coalizão de design, os encontros colaborativos e os diálogos estratégicos que deles podem surgir possam criar condições para a emergência do novo continente e para a conexão das ilhas de modo de vida mais sustentáveis.
As ideias de Manzini (2017a) são ampliadas com as contribuições do pensamento complexo. Nos estudos de Morin (2015), buscamos uma perspectiva que tratasse de integração, interdependência e relação entre elementos. Encontramos então a noção de unitas multiplex (unidade complexa) em que termos são simultaneamente antagônicos, concorrentes e complementares e que apenas podem ser compreendidos em um movimento dialógico. Essa noção nos ajuda a entender aspectos essenciais para propor uma coalizão de design.
Também precisávamos compreender os processos e práticas que rompem com a lógica dominante desenvolvidos pelos ecossistemas criativos; então debruçamo-nos na definição de inovação social que encontra-se no capítulo 3. Inicialmente, procuramos estudá-la a partir de uma pesquisa de design, o projeto Emerging User Demands for Sustainable Solutions (EMUDE), desenvolvido por Jégou e Manzini (2008) e Meroni (2007). Para complementar a discussão sobre o tema, trouxemos as ideias dos pesquisadores envolvidos no projeto Transformative Social Innovation Theory (TRANSIT), como Avelino et al. (2017) e Haxeltine et al. (2016).
Para analisar e interpretar as práticas realizadas nos ecossistemas criativos como visões e ações para uma cidade mais sustentável, baseamo-nos em documentos da ONU, especialmente os dezessete ODS (NAÇÕES UNIDAS, 2015) e o manifesto The City We Need 2.0. (UN-HABITAT, 2016a). Como conteúdo complementar à noção de desenvolvimento sustentável advindo da ONU, trouxemos aportes dos princípios da permacultura (HOLMGREN, 2013), cuja discussão encontra-se no capítulo 4.
O capítulo 5 é dedicado aos ecossistemas criativos. Em um primeiro momento, discutimos o conceito a partir da pesquisa bibliográfica a qual foi baseada novamente em Manzini (2017a) e Morin (2016). Procuramos compreender os ecossistemas criativos segundo sua dimensão relacional e seu movimento dialógico, sobre os quais Morin (2016) nos fornece importantes contribuições. A interpretação de Manzini (2017a) sobre o modo de design é o que nos ajuda a compreender a maneira a qual operam os ecossistemas criativos.
A segunda parte do capítulo 5 trata dos ecossistemas criativos identificados em Porto Alegre nos quais pudemos observar as questões discutidas na fundamentação teórica e que também forneceram subsídios para a proposta de integração entre eles. A identificação dos ecossistemas criativos se deu a partir de conversas informais com integrantes dos mesmos, participação em eventos sobre assuntos relativos a eles e pesquisa em redes sociais digitais. As técnicas de coleta de dados utilizadas foram, além de pesquisa bibliográfica e documental: entrevistas semiestruturadas com integrantes dos ecossistemas criativos; pesquisa em rede social digital, sendo este o canal principal de divulgação de suas atividades; visitas aos locais nos quais estão localizados os ecossistemas criativos; participação e observação em atividades realizadas pelos ecossistemas criativos; relatos de integrantes e de outros atores em eventos sobre assuntos relacionados como colaboração, transformações urbanas e desenvolvimento sustentável. Os registros das coletas de dados estão em fotografias, áudios, vídeos, anotações em diário de campo e quadros com os dados categorizados.
A análise dos ecossistemas criativos nos levou a reuni-los em quatro tipos distintos, que interpretamos como arquipélagos das ilhas imaginadas por Manzini (2017a): as casas colaborativas, os espaços coletivos de produção, as ocupações urbanas e as moradias compartilhadas.
As casas colaborativas são formadas por jovens empreendedores de áreas da economia criativa como design, arquitetura, moda, publicidade, tecnologia, entre outras. Utilizam um local para realizar suas atividades e o gerenciam de forma colaborativa, em que todos têm a possibilidade de participar nas decisões, sejam elas quais forem. Os espaços coletivos de produção são semelhantes às casas colaborativas, porém divergem quanto à gestão interna, que é centralizada. Esses espaços têm se mostrado alternativas para os modos de produção tradicional. As ocupações urbanas são constituídas de coletivos que lutam pela reforma urbana e pela função social da propriedade ocupando imóveis ociosos na cidade. E as moradias compartilhadas são formadas por grupos de pessoas que escolhem morar juntas e compartilhar espaços comuns como a cozinha, sala, quintal, configurando outros modos de convivência.
Assim como em um arquipélago, em que há ilhas mais próximas e outras mais afastadas umas das outras, os ecossistemas criativos também se apresentam dessa forma. Uns maiores, outros menores, cada um com suas características específicas conferindo diversidade ao arquipélago. E, ao mesmo tempo, estão todos submersamente conectados através de suas ações em prol de maior bem-estar e qualidade de vida. Buscamos estudar os quatro tipos de ecossistemas criativos e entender a maneira como se organizam, quais inovações sociais promovem e quais as ações e projetos desenvolvem em direção ao desenvolvimento sustentável.
A partir da fundamentação teórica e da investigação sobre os quatro tipos de ecossistemas criativos, pudemos então propor uma coalizão de design através de diálogos entre eles. Diálogos que se baseiam no que os ecossistemas criativos têm como visão comum para um mundo sustentável, igualmente valorizando e aprendendo com o que eles têm de diferente entre si. O capítulo 6 apresenta a proposta de coalizão e seis temas de diálogos possíveis. E, como uma forma de colocar em prática a coalizão, é por fim apresentada uma proposta de encontro colaborativo.
O último capítulo apresenta as considerações finais a respeito do trabalho. Nele expomos os principais resultados, reflexões complementares e possíveis desdobramentos futuros. É também no último capítulo que abordaremos a sistematização do método utilizado nesta pesquisa. Esta escolha está fundamentada nos argumentos de Morin (2016, p. 36): "[...] o método só pode se construir durante a pesquisa; ele só pode emergir e se formular depois, no momento em que o termo transforma-se em um novo ponto de partida, desta vez dotado de método". Portanto, ao fim do trabalho apresentaremos os passos dados para a elaboração do estudo.
Acrescentamos que nossa pesquisa alinha-se com os estudos da Design for Social Innovation and Sustainability Network (DESIS Network), rede internacional criada em 2009, a qual o SeedingLab, laboratório do GPDEICS, integra. Em 2017, a rede desenhou um mapa a partir dos projetos desenvolvidos e estudados pelos laboratórios de design de universidades de países da América Latina, da África, da Europa e da América do Norte. O mapa mostrou uma concentração de projetos nas seguintes áreas temáticas: a) Troca de Cuidados: projetos com foco no apoio à serviços e relacionamentos pautados no cuidado mútuo; b) Design e a Cidade: projetos que dão suporte a comunidades que desejam transformar espaços em lugares a partir de processos de codesign; c) Geração de Renda: projetos que colaboram para que os participantes também tenham benefícios econômicos, mantendo ao mesmo tempo seus valores sociais. (DESIS, [2017b?]). Neste sentido, acreditamos que a investigação que realizamos enquadra-se nas três áreas temáticas pois proporciona entendimentos sobre como o design pode contribuir para o fomento de iniciativas de cuidado mútuo, de transformação de espaços em lugares de convívio e de novas formas de produção e geração de renda alinhadas à valores sociais e ambientais.
Com este estudo, procuramos contribuir, em especial no âmbito do design estratégico, para a inovação social e a sustentabilidade, para tornar visível e fomentar novos modos de ser, de trabalhar e de conviver que criam descontinuidades no sistema atualmente dominante. Por fim, como pano de fundo, esta foi uma pesquisa com o intuito de valorizar as ações cidadãs a partir da disciplina do design e demonstrar a relevância sociopolítica das mesmas.